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Diretório dos índios do Marquês de Pombal : ou quando se acirrou a diferença social entre nativodescendentes e afrodescendentes no norte do Brasil.

negro-indio

introdução

O presente texto tem como objetivo esclarecer de forma sucinta e simples, conceitos básicos e históricos relativos ao entrelaçamento da população indígena e da de origem prevalentemente indígena desetinizada e/ou miscigenada (referenciada popularmente como parda de origem indígena ou “cabocla”), com a população afrodescendente (descendente de africanos independente de fenótipo característico ou miscigenado) sob o manto comum de população “negra” no norte do Brasil.

Além, das tentativas de desentrelaçamento, identificar a origem das trajetórias de diferenciação dos lugares sociais e condições de mobilidade social particulares de cada um dos grupos a partir de lei real datada de 7 de Junho de 1755, tratando de ordenamento de relações estatais e sociais nas “Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão” (regiões administrativas coloniais que à época concentravam os territórios de outros atuais estados da região norte como o Amazonas e do nordeste como o Piauí e Ceará), na época uma segunda colônia portuguesa nas Américas que não fazia parte do Brasil.

Para notação mais clara, passo a utilizar o termo nativodescendente para designar genericamente tanto indígenas quanto descendentes miscigenados ou sem etnia autodefinida e somente indígenas quando o contexto indicar o sentido corrente do termo.

Cabe lembrar também que o termo NEGRO, passou a ser utilizado por introdução dos espanhóis a partir do século XVI com o sentido de escravo/escravizado, sendo aplicado a todos em tal situação (tanto para africanos quanto para indígenas americanos).

Por economia textual e para conscisão, remeto as informações referentes ao Marquês de Pombal e sua relação com a administração do estado português e sua então colônia brasileira e a questão indígena para hipertexto (texto externo).

O início da questão

De conhecimento amplo é o fato que durante a colonização do Brasil e da segunda colônia portuguesa, o atual norte brasileiro, os primeiros escravizados para fins de mão de obra, foram os nativos brasileiros (ou simplesmente índios) cuja abolição oficial da escravidão veio em três episódios:

1) em 1o de abril de 1680 (através de lei real, na realidade inócua)

2) em 7 de junho de 1755 (a já citada lei tratando do Pará e Maranhão)

3) finalmente, em 1758 a medida foi estendida por alvará para o então Estado do Brasil .

Até então era comum os indígenas escravizados serem referenciados por “Negros da Terra” ou simplesmente Negros, referência também utilizada entre o próprios escravizados.

A utilização de mão de obra africana escravizada na América começou por volta de 1550 (segundo alguns historiadores por volta de 1570 no Brasil), ou seja, por mais de 180 anos, foram “Negros” tanto os africanos e descendentes quanto os indígenas e descendentes escravizados no Brasil ( obviamente com natural miscigenação entre os dois grupos…).

Portanto, apesar de ser corrente a interpretação de que Negros seriam os descendentes dos africanos escravizados, há bom espaço conceitual e histórico para “encaixar” na população negra (ou simplesmente descendente de escravizados) a descendência dos ” Negros da terra” , ou seja, a população parda de origem indígena (os populares “Caboclos”).

Do ponto de vista sociológico, e apesar dos fatores de diferenciação na mobilidade social que serão explanados adiante, os indicadores sociais e vicissitudes da maioria dessa população não difere razoavelmente da maioria da população afrodescendente, sendo inclusive para fins afirmativos não desagregada da população negra.

A encruzilhada

Se até meados do séc. XVIII Negros africanos (juntamente com os “crioulos”, negros aqui nascidos) e Negros da Terra, seguiam uma trajetória social relativamente comum, seguidos a certa distância pelos Índios que resistiam à escravização e maiores contatos com a sociedade envolvente (sendo por tal paulatinamente exterminados).

Em tal ponto se dividiram em três direções distintas, os afros seguiram escravizados e desprovidos de cidadania, os indígenas assimiláveis às regras “civilizatórias” impostas pela coroa e os antigos negros da terra ganharam cidadania e foram incorporados com respeitos à sociedade envolvente, enquanto os indígenas resistentes à assimilação, passaram a ser vistos como completamente inúteis aos interesses da sociedade branca, além de “entraves” à expansão das fronteiras de colonização e exploração de recursos naturais, portanto alvos naturais de extermínio e expropriação (situação que apesar da atual proteção do estado, permanece atualíssima).

Neste ponto é interessante e esclarecedor a leitura do seguinte trecho da Lei real de 1755 (com a linguagem e grafia originais da época) que mudou a situação de indígenas assimiláveis e descendentes perante a sociedade :

“10 – Entre os lastimosos principios, e perniciosos abusos, de que tem resultado nos Indios o abatimento ponderado, he sem duvida hum delles a injusta, e escandalosa introducçaõ de lhes chamarem NEGROS ; querendo talvez com a infamia, e vileza deste nome, persuadir – lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa de Africa. E p orque, além de ser prejudicialissimo á civilidade dos mesmos Indios este abominavel abûso, seria indecoroso ás Reáes Leys de Sua Magestade chamar NEGROS a huns homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar por isentos de toda, e qual quer infamia, habilitando- os para todo o emprego honorifico: Naõ consentiraõ os Directores daqui por diante, que pessoa alguma chame NEGROS aos Indios, nem que elles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavaõ; para que comprehendendo elles, que lhes naõ compete a vileza do mesmo nome, possaõ conceber aquellas nobres idéas, que naturalmente infundem nos homens a estimaçaõ, e a honra. ” (Apud ALMEIDA , 1997)

Os desdobramentos

Pela leitura do trecho anterior, não fica difícil imaginar os desdobramentos de tal ato, a saber :

a) A instalação de generalizada mentalidade de “superioridade” do índio e de seus descendentes “caboclos” em relação aos negros (naquele momento passados a ser considerados apenas os afros)

b) O reforço da estigmatização do negro e da “necessidade” de rejeitar por todos os meios tal “pecha”, uma maior aceitação e mobilidade social do nativodescendente

c) O surgimento da tradição popular de invisibilização e negação da presença negra na região

d) A geração de um grande intervalo temporal e diferença de condições iniciais da trajetória de nativosdescendentes e afrodescendentes enquanto livres cidadãos (com óbvias consequências no rankeamento social atual de ambos aos grupos).

Hoje a população autodeclarada preta e parda na região diretamente atingida pelo ato pombalino de 1755 é a seguinte :

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FONTE: IBGE CENSO 2010

Interessante observar que no Ranking (RK) nacional os 3 estados com maior população autodeclarada parda estão na região, assim como os dois de maior população indígena, apenas Maranhão e Piauí aparecem entre os 4 com maior população autodeclarada preta e Pará (tido como uma das grandes portas de entrada e fixação de escravos na região) ocupa a a 11ª posição e o Amazonas (em cujo o estado a presença negra sempre foi tradicionalmente negada e invisibilizada) ocupa a antepenúltima posição nacional em pretos autodeclarados.

Interessante observar que apesar de reconhecida “naturalmente” como terra “predominantemente indígena ” ocupando a segunda posição no ranking nacional relativo a tal população, possui em termos percentuais empate estatístico com o percentual de autodeclarados pretos (estes como já dito, tradicionalmente invisibilizados e negados na composição étnico-racial do estado).

A se seguir porém o critério do IBGE (utilizado desde 1872 no primeiro censo brasileiro) que agrega pretos e pardos na população negra, Amazonas e Pará seriam os dois estados de maior proporção populacional negra… coisa que faria total sentido se baseado no conceito apresentado de população negra como descendente de escravizados e não apenas afrodescendente, o que gera porém uma grave imprecisão de origem e pertença da população regional.

De fato e perceptível empiricamente, constata-se que a grande maioria dessa população (mas não toda ela) autodeclarada parda possui traços indígenas e não africanos.

Ao mesmo tempo que seguindo o preconizado na lei do diretório pombalino, introjetada e repassada de geração em geração, rejeitam a associação estigmatizada com “Negro” ou como parte da população negra, e não podendo se colocar como indígenas (esses etinizados) nem como brancos, reconhecem a origem indígena (a marca, presente no fenótipo) mas em geral reforçam, valorizam e reivindicam uma identidade “cabocla” não necessariamente acoplada exclusivamente ao fenótipo mas principalmente uma cultura caldeada e característica da região amazônica.

A solução para tal impasse a nosso ver, e sem ferir os princípios que norteiam a moderna pesquisa de populações e políticas públicas, surgiria com a reformulação das categorias censitárias para as de ancestralidade geográfica (nativodescendentes [etinizado/ desetinizado] , eurodescendentes, afrodescendentes e asiaticodescendentes), emprestando assim maior precisão à pesquisa censitária e todos os desdobramentos.

A conclusão

Diante do exposto ficam aclaradas algumas situações características à região norte do Brasil no tocante a temática e que sem maiores complementos também pode ser estendida ao restante do país.

A trajetória dos nativodescendentes assimilados, após o ato pombalino foi bastante facilitada e estabeleceu as condições para que hoje os mesmos estejam bem distribuídos ao longo de toda a pirâmide social (nacional e regional), coisa que ainda não ocorre com a população afrodescendente, majoritariamente concentrada na base da pirâmide e iniciando deslocamento massivo para o centro.

Referências

ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: Um Projeto de “Civilização” no Brasil do
Século XVIII. Brasília , UnB, 1997.

Brasil Escola . Reformas Pombalinas